Numa conversa aleatória por Skype com a Fabiana, ela me disse “Bora viajar?”. Respondi que sim. “Diz aí um lugar”, ela emendou. Eu disse “Tromsø, Noruega”, afinal qual lugar mais aleatório que uma cidade a apenas dois mil quilômetros do Polo Norte e 300 quilômetros acima do Círculo Polar Ártico? Ela “Quando?”. “Último fim de semana de outubro, saímos na sexta e voltamos no domingo”. E então ela ficou calada um tempo. Eu chamei, verifiquei a conexão com a internet, a chamada no Skype… estava tudo OK. De repente, ela volta e diz “Pronto, passagens compradas!”.
A sorte dela é que a cidade e a data não eram nada aleatórias. O Tammer me convidara para a comemoração dos seus 30 anos e minha passagem já estava comprada havia algumas semanas.
Eu queria mesmo era ir na quinta à noite, mas depois de ficar entre onze da noite e seis da manhã numa conexão em Zurique, decidi que prefiro perder algumas horas do lugar para onde vou do que passar uma noite inteira em claro esperando a banquinha de pretzels abrir. Na sexta de manhã entrei no voo de Lisboa para Oslo. Na capital norueguesa, eu tomaria outro voo para enfim chegar a Tromsø. A Fabiana também teria conexão em Oslo, vindo de Londres, mas seu voo era mais cedo que o meu e não daria tempo de nos encontrarmos. (E quando se trata da Fabiana, é bom sempre usar o condicional, porque a qualquer momento tudo pode mudar.)
Eu não tinha ainda meu cartão de residência, apenas um papel do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras) que dizia “Esse cara pediu a residência, mas a gente ainda não deu”. Mas não me preocupei, afinal a Noruega está dentro da área Schengen, assim como a Espanha e a Alemanha, países que eu já havia visitado e onde não precisei mostrar documento algum ao entrar. Porém, antes de desembarcarmos, uma voz que eu desejei vir apenas de dentro da minha cabeça disse que os passageiros deveriam ter o passaporte à mão ao sair da aeronave. Pensei “Foi massa enquanto durou, Europa”. Mostrei o passaporte para o agente da imigração e seguiu-se o seguinte diálogo:
“Qual o motivo da sua visita à Noruega?”
“Vim para o aniversário de um amigo.”
“Um amigo meu?”
“Nós temos algum amigo em comum?”
Imediatamente após dizer essa frase, concluí que havia assistido a muitos episódios de Friends e que as respostas sarcásticas do Chandler funcionam porque aquilo é ficção. O máximo que pode acontecer é alguém dizer “corta!”. Me arrependi na hora de ter dito aquilo. Apesar do meu tom ter sido amigável, aquela era a pior situação para fazer piadinhas. E se o cara não gostasse de Friends?
Mas ele apenas devolveu o sorriso e continuou:
“Seu amigo mora em Oslo?”
“Não, em Tromsø.”
“E o que ele faz?”
“Doutorado em Linguística.”
“Ele é brasileiro?”
“Sim.”
“E quando você vai embora?”
“Segunda… não, não, domingo.”
“Segunda ou domingo?”
“Domingo, domingo.”
“OK, seja bem-vindo.”
Por mais cordial e flexível que seja um agente de imigração e por mais que ele não use uniforme, e sim uma roupa comum (e um crachá, talvez, não lembro), ainda assim é um agente de imigração e a função primeira dele é deixar você tenso. Tão tenso que escapam até piadinhas irresponsáveis. Mas eu estava enfim na Noruega e agora deveria esperar umas quatro horas até meu voo para Tromsø.
Fui ao caixa eletrônico pra saber a cotação entre euro e coroas norueguesas. Naquele dia, um euro valia umas sete coroas. “Tô rico!”, concluí. Tirei 200 coroas no mesmo caixa pra passar o fim de semana inteiro e comprei uma cerveja já pra começar a entrar na vibe. Noventa e três coroas. NOVENTA E TRÊS. Isso significa 34 reais por meio litro de cerveja. São 29.000 pesos colombianos por meio litro de cerveja. Catorze dólares por meio litro de cerveja. Onze euros por meio litro de cerveja. Enfim, eu não estava nada rico.
O Tammer me aconselhou a ficar no aeroporto, porque, segundo ele, não tem muito o que ver em Oslo, e o centro da cidade é longe do aeroporto, o que me faria gastar muito com táxi. Então continuei a leitura do S. Bernardo, que havia começado no avião, numa cadeira que era como aquelas cadeiras de praia, em que você se deita mais do que se senta, mas acolchoada. Não me concentrei sequer por cinco minutos e saí andando pelo aeroporto. (Percebi que muitas propagandas e avisos diziam “Escandinávia e Finlândia”, como se fossem coisas distintas. “Vai ver são realmente distintas”, pensei. E são, depois fiquei sabendo.)
O tempo condicional para a Fabiana se confirmou quando eu recebi uma mensagem dela dizendo que havia perdido o voo, que só ia chegar a Oslo mais tarde e que o voo pra Tromsø seria lá pelas quatro. Exatamente o meu voo. Fazia mais de seis meses que não nos víamos, então aquelas duas horas entre a chegada dela e nossa partida para Tromsø passaram bem rápido.
Ela conseguiu convencer a pessoa que estava ao meu lado a trocar de lugar com ela (eu jamais conseguiria, simplesmente porque eu sequer tentaria fazer isso) e de bônus conhecemos o Paul – se é que é esse o nome dele mesmo – um norueguês que gentilmente ensinou à Fabiana todas as palavras básicas em sua língua mãe durante as duas horas e pouco de voo.
O Tammer nos esperava no aeroporto. Fazia um mês apenas que o outono havia começado e já estava tudo coberto de neve. Buscamos a Elena, namorada dele, na universidade, e rumamos para seu apartamento. Já era noite fechada e pela janela de vidro podíamos ver a luz do poste ressaltando a neve fina que caía. Depois de jantarmos, fizemos um pub crawl e discutimos, entre outros assuntos, sobre porque hoje o Icasa merece o título de segunda força do futebol cearense em detrimento do Fortaleza.
Ao último bar, que me lembrou muito o antigo Loucos & Sonhadores de Lisboa, chegamos literalmente ao apagar das luzes. OK, não foi literalmente, mas era tarde o suficiente para sermos os únicos clientes, e o bartender foi incisivo ao dizer que só poderia nos servir uma cerveja. Em determinado momento, entrou um homem com seus quase trinta anos no ambiente onde estávamos, fez uma acrobacia, sorriu e saiu como se aquilo fosse tão natural quanto achar que o Fortaleza ainda tem expressão no cenário do futebol cearense. De volta ao apartamento, o Tammer, tricolor que é e tendo se reservado à falta de argumentos que advogassem pelo seu clube durante grande parte da noite, me ofereceu uma toalha com o escudo e as cores do seu time dizendo, com um semblante vingativo e impassível, “… a única limpa”.
No dia seguinte, após ser asfixiado pela Fabiana de manhã numa tentativa bem-sucedida de fazer com que eu parasse de roncar, tomamos café e saímos para conhecer Tromsø. A cidade concentra-se em três ilhas. Estávamos na ilha mais habitada, então atravessamos a ponte e tomamos um teleférico – ah! os teleféricos, por que eles existem? – até um lugar de onde pude admirar uma das vistas mais fantásticas de sempre. Caminhei com o pé enfiado na neve desavisadamente e, na iminência da gangrena, entramos num bar onde havia uma lareira. A Fabiana e o Tammer tomaram chocolate quente. Eu, cerveja. Em seguida, fomos a uma reserva onde havia renas, depois ao bar mais antigo da cidade – onde tomamos uma cerveja feita da mesma matéria-prima que o pão que acompanhava a sopa que comemos – e então, já quase no escuro (às quatro da tarde), fomos à Sommaroy, ou “Ilha do Verão”.
Debatemos a respeito do quão incestuosa é – e se de fato é incestuosa – uma relação entre primos enquanto esperávamos a sopa mais deliciosa que já comi na vida. Tão deliciosa que nem parecia uma sopa. Já no escuro, voltamos para o apartamento observando as pessoas por quem eventualmente passávamos e que estavam fazendo cooper a zero grau. Revoltante.
Era hora do aniversário. Aquela foi seguramente a festa mais cosmopolita a que compareci. Além de nós três, brasileiros, e da Elena, romena, havia pessoas do Irã, do Equador, da Rússia, da Alemanha, obviamente da Noruega e por aí vai. O karaokê ajudou na socialização, mas o que realmente une as pessoas é o álcool. Não me venham com teorias. E o fato de as cervejas estarem na varanda, talvez até mais geladas do que se estivessem na geladeira, estimulou ainda mais a convivência. Ao fim da noite, havia muitas histórias a serem contadas, e outras a serem esquecidas.
No domingo, acordamos tarde o suficiente para fazermos do almoço café da manhã. Caminhamos até o aeroporto, pois o voo da Fabiana era mais cedo que o meu. Dessa vez ela conseguiu pegar o voo e então me dei conta de que o meu só seria dali a quase duas horas. Decidi voltar para o apartamento. Joguei FIFA com o Tammer, perdi bastante e então voltei para o aeroporto. Às quatro da tarde, já anoitecendo, peguei o voo de volta para Lisboa, durante o qual terminei de ler o S. Bernardo.
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